agosto 18, 2009

Otávio resmungou vocês e suas frivolidades teóricas quando eu disse que ficar envolvia uma série de decisões que não poderiam ser tomadas sem análise apropriada e reclamou que Brigite tampouco tinha tempo para ele embora ele fosse casar com ela em menos de 30 horas, casar mesmo, na Igreja, e não havia nada que eu pudesse fazer a não ser ir embora. Otávio, desde que começara a frequentar os círculos sociais de minha família, deixara bem claro que não gostava de Frederico, e hoje, pensando, talvez tenha sido exatamente por essa clareza em não gostar de Fred que eu tenha me aproximado de Otávio. Mas daí a ficar para perpetuar uma enganação.
O que resta, hoje, é o fluxo.
Medo de perder a construção do Mundo. O estertor do Mundo.
Um medo rútilo
um discurso curto, uma limitação
fútil.

agosto 13, 2009

É curioso que não tenhamos encontrado nada de diferente nessa viagem. Ontem o projeto completou dois anos e ainda não avistamos um único ser vivo. Uma vez, bastante à leste daqui, quando ainda estávamos no mar, julguei ver uma sombra negra, grande como uma cachalote, perto da região que batizamos de Pequeno Canal e que se tratava de um fino estreito, delineado por falésias intransponíveis, que ligava dois Oceanos inominados, mas não passou disso - uma impressão. De resto, a expedição tem sido assustadoramente tranquila. Estamos em uma praia agora, bem distante do Canal (creio). Desembarcamos há três dias, mas ninguém se aventurou a entrar mais do que alguns metros na floresta de árvores altas que limita o fim da faixa de areia. As árvores parecem árvores, de qualquer maneira. É incrível como todos os lugares estão cheios de árvores. Mais cedo, enquanto cozinhávamos um pouco do resto de comida que ainda nos resta, lembrei de um poema de Blaise Cendrars. Chama-se Borboleta, transcrevo-o da forma como me recordo dele (nunca o li em francês): "É curioso / Já há dois dias que estamos à vista de terra e nenhum pássaro veio a nosso encontro nem se meteu em nosso sulco / Em compensação / Hoje / De madrugada / Ao penetrarmos na baía do Rio / Uma borboleta grande como a mão veio viravoltear em torno / do navio / Era negra e amarela com grandes estrias de um azul apagado". Viravolteio pelo acampamento mais um pouco antes de dormir. Amanhã, à Floresta Das Árvores Altas.

agosto 12, 2009

I've went, and came back. If it took 10 years, or one day, it doesn't matter: the journey, endless, is just a symbol. As symbols are the Cyclops, the seas, and the blind seer. The Symbol is the regress; the trip, just the process; and this scar I have in my leg isn't actually a scar: it is more a map - and a sign.

agosto 11, 2009

li isto em algum lugar, otávio, e é verdade, sei agora que é: tenho ciúme desse cigarro que você fuma tão distraidamente. sei que tenho. você não tem? tenho inveja do tempo que você leva para acender um cigarro, sempre dispendioso; da fumaça que você solta arrogante e engole mais uma vez, em dois tempos. e eu não tenho tempo para explicar mais: a frase, no original, era dividida ritmicamente em dois períodos - um para o ciúme, outra para a distração. também divido você em dois períodos: um para ser, outro para... não, não queria ser tão óbvia. não queria sacar uma referência só para ser referencialmente óbvia depois. e sim, otávio, eu sei onde li o poema que cito (não cito de memória). não queria é que você soubesse. e você sabe, eu sei.
Quando Helena sugeriu que U deveria sair agora U não achou que fosse séria a sugestão; não que fosse séria: achou que era uma brincadeira. Não era. Helena queria transar com U e por isso sorrira - ela sabia que o sorriso desencadeava o desejo - mas nunca quis passar o dia com U. De uma maneira mais sádica, usara o mesmo sorriso com Mariana, que ficara de ligar esta tarde. Queria passar o dia com Mariana. Helena havia esquecido Mariana, mas a lembrança de uma espera que não houve em um reencontro mínimo trouxe uma vontade que Helena não achava que fosse capaz de controlar (embora tenha sido e não tenha transado com Mariana). No retorno, Helena quis se entregar para U, mas com Mariana ela queria mais, e era difícil admitir isso. Helena sabia que Mariana, na melhor das hipóteses, ficava com garotas apenas por diversão. U e Helena é que eram singularidades na história de Mariana, não o contrário, e era de certa forma triste para Helena perceber que Mariana não queria mais namorar com ela; perceber que Mariana não estava mais presa no passado. Era melhor para Helena acreditar que Mariana estava, do que dizer para si mesma que ela queria apenas sexo: por isso não transou com Mariana: para evitar a vontade de um algo mais. Mas com U era diferente. A distância do momento em que Helena amou U é imensa agora, só a lembrança de um desejo infantil. Não tem medo de se apaixonar por U - isso poderia acontecer, mas seria o processo em si, um novo processo, e não um retorno a algo que não mais existe (o romance com Mariana). E U, apesar de não ficar apenas com garotas - como Helena - é mais ligada às garotas com quem ficou (o que quer dizer que ela transou com alguns caras mas nada demais). A espera, agora, mais do que nunca, é de Helena.
Etílanas, liot, iki qen dás,
fang inferns ah la láf:
trRe qi Fasdstem, trRe láf
O lans gruffet iki gila Dunt vela puint áj

julho 29, 2009

Estela Bitencourt passou aquela tarde toda escrevendo em folhas de papel A4 barato com canetas coloridas listas de compras que precisava fazer e de providências que precisava tomar antes do casamento da irmã, Brigite, que aconteceria em uma data bem próxima agora e deveria ficar marcado (no sentido de pretendia ficar marcado) a todo custo na lembrança dos familiares e amigos como o evento social da década, pretensão que não dava margem para erros. E Estela até ajudava, mas não podia concordar com isso. Não com uma festa que era praticamente uma antítese do seu próprio não-casamento, mas ninguém se lembrava daquela festa, nem mesmo Estela, que há duas noites fora abandonada por aquele infame Frederico Soares, esta montanha de princípios errôneos, antiga paixão de infância com quem Estela havia morado por seis anos, por falta de recordações ou referências melhores. Note que quando eu falo que Estela não lembrava, o que quero dizer é que ela se esforçava para não lembrar.

Estela não lembra por que Fred saiu de casa, nem por qual porta foi, e era realmente importante, ela achava que era importante, que ele tivesse saído pela porta da frente, não pela porta lateral, tão dada a retornos e incertezas. Depois que Fred deixou a casa, Estela levou muito tempo para entender que ela é que havia ido embora, não ele. À noite, depois de beber uma garrafa e meia de vinho, digitou três longos emails que nunca chegou a mandar: o primeiro, para seu chefe (um produtor de moda tão sádico quanto gay que sentia inveja de sua órbita como Marjorie havia sentido ao criar força gravitacional em Bernice), se tratava de uma carta de demissão cheia de mentiras que Estela passou horas inventando para justificar o fim. O segundo, em que pedia desculpas por não poder ficar para a festa, era para Brigite. Estela se comprometia, entretanto, em deixar quantas listas feitas fossem necessárias para manter a cadência dos afazeres para que a irmã mais nova perdoasse a sua ausência. O terceiro era para ela mesma, no futuro.

julho 23, 2009

Tudo poderia ser reinventado: os livros espalhados que não li, mas comprei; os livros que eu esqueci que li; os que citei sem ler. O despertador-celular que toca sem parar na bagunça do quarto e me diz que de alguma forma já é hora ir. Poderia reinventar as formas de te dizer oi e aquele jeito simbólico de dizer boa-noite. Reinventar os relacionamentos, as condições do desejo - repensar as condições do tamanho do desejo. E com o que nos importaríamos? Reinventar o início, as opções de fim, o processo e o fluxo. Reinventaria nossos nomes se pudesse; e esse parágrafo. E, olha, eu posso.

junho 30, 2009

Sy (no futuro ele assumiria o nome como seu), um pouco confuso, sentou-se enquanto Luv voltava a contar os frascos na prateleira (Sy descobriu depois que ela se chamava Luv), embora dessa vez ela ditasse uma sequência de números aparentemente aleatória: 16 e 2, 3, com 20, 88. Sy tentava acompanhar, achando-a cada vez mais louca. Lembrava agora que ela era garçonete no bar onde estivera ontem. Luv não queria conversar, pelo menos não até falar em voz alta os números 97 com 324, 1. O resultado improvável da conta a deixou excitada: ele estava abrindo a porta para ir embora quando ela parou de falar e pegou na prateleira um frasco azul comprido, a fita em seu braço brilhando com uma frequência sem cor. Depois correu até a porta e o abraçou. Às vezes eles esquecem, Luv disse, engolindo duas ou três pílulas e entrando no chuveiro.

maio 22, 2009

o passado é o passado do passado

amo tua boca como amei tua boca
de fumaças
como
se
fosse
não
amar
tua boca
o significado de todo o universo
e o universo não significasse nada

maio 15, 2009

o futuro é o passado do futuro

voltar é andar
para trás e é deixar
para o passado uma espécie
de futuro
inacessível (em conceito).

voltar é voltar
como se retroceder
fosse de certa forma acessível
e essa área (o futuro), não.

esta área é que não é acessível.

abril 16, 2009

the coolest kids

aliás, nem éramos
os únicos a dançar 

março 25, 2009

Ela acendeu mais um cigarro antes de continuar a fazer as contas. Era uma das últimas pessoas que ainda fumavam cigarros de verdade, com nicotina e alcatrão. Ele não sabia o nome dela. Não perguntara. Não tenho certeza se depois daquela noite ainda sabia o próprio nome. Ela o chamava de Sy, eu até poderia dizer por que, mas não sei. Sy é o código de domínio na Internet para Síria, mas ele não parecia nem de longe um árabe. Sy - magro, branco, cabelos pretos emoldurando o rosto trágico - parecia Case, um visual cyberpunk nostálgico, embora totalmente inconsciente.

Através da porta aberta ele podia vê-la mexendo nas prateleiras do banheiro, usando apenas uma calcinha, o perfil do rosto escondido pelo cabelo. Eram muito parecidos fisicamente, só agora tinha reparado, embora ela tivesse traços um pouco mais orientais e ele precisasse ir embora. Por isso perguntou onde exatamente estamos enquanto vestia a calça com que saíra ontem, agora toda suja de barro. Não tinha ideia de como voltar para casa, mas ela não respondeu nada. Nada. Apenas entrou no quarto e o empurrou de volta para a cama.

março 20, 2009

Helena ficou perto da janela com o telefone na mão esperando muito tempo por uma mensagem que nunca chegou. O céu estava claro como devia ser sempre o céu em uma tarde fria de inverno em que o vento arrasta folhas solitárias por ruas vazias mas Helena não teve vontade de sair. Helena tinha vontade de falar com Mariana, e foi por isso que ficou tanto tempo perto da janela olhando o vento que arrastava as folhas solitárias pela rua vazia em frente ao seu flat alugado tentando não pensar na mensagem - e só conseguindo pensar na mensagem, o tempo todo. Mesmo quando finalmente saiu de casa para enfim acompanhar as folhas levadas pelo vento, Helena continuou pensando na mensagem que nunca chegou - embora não segurasse mais o celular na mão e ao invés de uma roupa qualquer vestisse um casaco preto, de um justo bonito, seu maior cachecol, tão longo que mesmo com várias voltas no pescoço ainda podia passá-lo pelo cinto, e um chapéu de abas curtas, que devia impedir o vento de bagunçar sua franja loira como bagunçava as folhas caídas das árvores.