agosto 31, 2006

Segundo Poema

Lavínia deitou no sol; o corpo nu fremia, excitado. Gritava, sozinha nas pedras arredondas do rio veloz. Good day sunshine, meu velho amigo. Surgindo de alguma lembrança de poemas únicos, e primeiros, tenta pronunciar – entre um sorriso – o nome Imre; depois desiste dessas coisas tristes (destas palavras em branco) e mergulha nas águas diáfanas.

Com os olhos fechados deixa-se ficar deitada na correnteza que massageia seu branco corpo submerso; a cor vermelha dançando nas suas pálpebras. Então aperta os olhos até o cinza, e depois o preto; a barulho da água em repeat. Solta – vermelho lúdico – e aperta – cinza estático –; o som da cachoeira distante. Levanta-se – verde. O burburinho da água canta uma ode à sua nudez (à sua vagina).

agosto 27, 2006

Primeiro Poema

Não era meia-noite – como nunca foi meia-noite –, mas chovia; absurdamente chovia, a chuva fustigando a janela. Lavínia deu dois passos para fora de casa, e só; foi o que bastou para a chuva açoitar também seus olhos verdes e ela voltar para o quarto, sentar e copiar a epígrafe de Beckett em uma folha de papel sulfite A4 branco. Voltei então a casa e escrevi. Talvez ela tivesse, de outros tempos de colheita intelectual não concebidas, preso na garganta um poema sobre a chuva; ou talvez fosse só preguiça de tomar dois ônibus até o centro para ouvir a ladainha da irmã mais velha.

Abaixo da fala de Molloy, grafou com letras de forma a palavra chove, seguida de vários – cinco – pontos de exclamação; o braço, meio em piloto automático, transformou o último deles em um grande traço que rasgou toda a extensão vertical da folha; tinta azul se espalhando por vontade própria na imensidão retangular quase-branca. E de repente, no momento em que a caneta pára, Lavínia escreve, em minúsculas, o nome impronunciável de um escritor Húngaro; para depois, do círculo desenhado em volta daquele amontoado de consoantes, riscar uma flecha que corre até à epígrafe da página.

É então que a chuva entra também na casa. Sou triste. Chove pelos meus olhos. As lágrimas fustigam a página. E ela fica ali, chorando, pensando em alguma frase que pudesse salvar da não-existência aquela composição tola. Decide sair de casa. Nua. Sem roupas e sem personalidade, sem um eu; uma folha em branco sendo desintegrada pela tempestade; uma folha em branco sendo escrita de mentiras. Senta-se na beira do mar e fica olhando as pequenas luzes dos barcos balouçarem. Uma folha em branco, um poema sendo escrito pelo vento.

agosto 25, 2006

bebela
bela
bem que quis
ser gente
depois
que tanta
gente
disse que sim
depois que
tanta gente
gente mesmo
disse:
enfim
que ela era
mui bela
bebela
como uma
rima
sem fim

agosto 21, 2006

dois poemas

Tchocolatl

Feliz mesmo é te saber.
Dar dois ou três passos à direita
estender o braço e apontar o mar.
Feliz mesmo é respirar fundo.
Querer muito duas ou três
barras de chocolate no meio da tarde.

No Sofá

te faço
pela janela semi-aberta
um acorde de sol
nos cabelos

agosto 14, 2006

Os ventos é que me diziam:
- Se te desejo, bem sabes, corres.

Eu, pastor náufrago de estrelas.
E como um louco qualquer
chutando postes e jurando com sangue
por sobre assobios desafinados
afundei o navio e perdi as ovelhas.

Sem mais nada que me prendesse
corri para alcançar o perfume do teu sopro.
E quando pude sentí-lo, só por um segundo
por todos os lados as letras dos teus nomes
alinharam-se às loucuras do meus desejos.

Eros.
Éramos nós, nos campos
nus.

Eu, navegando em um barco de pólen
as velas de pó varando por um não-mar absoluto.
Um infinito oceano às avessas. E nas
mesas de café da manhã nós apressamos os danos
que a distância causaria. Qual ânsia essa nossa.

Os ventos é que me diziam:
- Toma-me o corpo. Toma-me o corpo!

Mas não havia corpo, como não havia barco.
E se havia vento, só o senti na face
como um beijo breve. E nada mais.

Não havia um pulsar que me ligasse à eternidade.
Mas alguns fios de ar me prendiam a você.
Não havia pulso que me ligasse à perfeição.

Que vela seria soprada? Que face, castigada?

Não havia uso que te desligasse do gozo.

agosto 10, 2006

drops poéticos para preencher um vazio

I

Me deixe ver
que melodias cantaram
esta manhã
os pássaros.
Repita comigo.

II

E te contar uma hitória
curta
que tenha um final feliz.

III

Você costumava
costurar à luz de velas
e quem dera
eu não estivesse só inventado
a situação.
Mas não foi bom imaginar?

IV

Pegar cenas de cinema
e reinterpretá-las
para as nossas conversas.
Jogar as coisas nas bolsas
e mandar lembranças.

V

Ser anti-sutil
com as palavras
- não medi-las.

agosto 08, 2006

pequena crônica-conto de ensino médio

“Você está sentindo seus dentes?” – me perguntava o meu amigo enquanto batia com a ponta dos dedos nos incisivos.

“Óbvio, por quê?”.

“Eu não sinto os meus!”

E nós rimos. Estávamos sentados no pátio do colégio rindo alto; meio-dia e pouco, as pessoas – alunos do ensino médio, alunos das engenharias – passavam, desatentas, recém saídas de suas aulas.

Há pouco tivemos a última aula de física do último ano do ensino médio. O professor nos liberou meia hora
antes de bater o sinal; aproveitamos para comemorar.

Uma amiga passa e nos vê. “Vocês estão bêbados?” – pergunta.

Rimos mais.

A garrafa de conhaque ficou, vazia, na sarjeta da Avenida 7 de Setembro. Estava calor, ainda tinha cursinho à tarde; o Cícero tinha que voltar para Campo Largo. (Essa hora o Guilherme deveria estar chegando em casa – um pouco menos que nós.)

“Ah, vocês estão bêbados!”

“Só um pouco...” – respondi, como de costume.

Naquele dia eu ainda iria escrever uma redação com um lápis de pedreiro, abraçaria minha irmã várias vezes – esquecendo que já havia abraçado –; o Guilherme derrubaria batata frita em cima da sua mãe; o Cícero entraria no ônibus e chegaria sabe-se lá como em casa, só para desmaiar na sala.

E eu diria: “Definitivamente, conhaque é forte demais para certas pessoas.” E até hoje temos certo receio da bebida. E de perder os dentes.

agosto 07, 2006

Cinco Pequenos Trechos de Deitar - E um Sexto (Soneto)

I

De duas uma:

Ou invadimos a floresta
e deitamos no campo
de lises que lá se escondem
para que possamos

Ou ficamos aqui olhando o nada.

II

Pois de deitar
de deitar por muito tempo
de mãos dadas
passei a te olhar melhor.

III

Sobre ti
sobre a tua pele branca
eu deitaria míriades de toques
leves
e te deixarias voar

se eu pudesse.

Se eu pudesse
eu deitaria algumas
belezas desconhecidas
sobre o nosso deitar.

IV

Deitamos sobre o pôr-do-sol
cobertos de ventos
e juras de eternidades.

Deitamos sobre a noite
cobertos de nada
de nada
e gozas.

V

Cabe o deitar único.
Deitar sobre deitar
um sobre o outro.

Cabe o deitar úmido.
Línguas sobre tudo
línguas
devorar.

Cabe o deitar lúdico
o rolar
pelo campo de lises.

Cabe um deitar único.

VI


Deitar palavras sobre
teu corpo nu.
E sob a lua, cobertos
de versos, dançar ao canto
simples das águas.

Te olhar deitada.
Te desejar. Te querer.

Te sorrir. (Bem sabes o quanto
gosto de sorrir para ti.)

Saber-se talvez terra
mas ser água. Água.
Misturar-se atento ao rio
que desliza sem leito.

Tocar a imensidão de um deitar.

agosto 05, 2006

Pássaro-Ângulo

I

Nasceste pássaro
no passado
e onde quer que voes
agora
continuas a ser pássaro.

Não tem medida
a tua profunidade
de ser pássaro.

E se caminhas pela grama
à cadência das nuvens,
canta baixinho
algumas melodias
de pássaro

para provar do esquecimento
do teu ninho.

II

Quando dos estilingues
não o acertaram uma pedrada
sequer, o pássaro passou
a desfilar em tudo
quando é canto ainda
mais garboroso de ser pássaro.

E por um momento absurdo
a pontaria torta da criança
que soltou a forquilha
e ficou segurando a pedra
pareceu genial.

Depois sangrou a boca.

III

Se não tinha
a lisergia
prolixa das borboletas
que habitam
paredes é porque
o pássaro sempre
foi reto.

O pássaro é reto
torto é o ângulo.

E se não tinha
cores brilhantes
cantos assonantes
ou rimas ricas
é porque ainda
não era um composto.

IV

Ficou leve o vôo
do pássaro-ângulo
sutilmente nos mostrando
o quão tortos
somos na hora de voar.
E como somos pobres
na hora de escrever.

Somos meros paçarinhos
e não éguas
ou borboletas.

Mas o pássaro-ângulo
ele sim
agudo e obtuso
leva as palavras
às nuvens rosas
de orgasmos cintilantes.
O verbo geme.

V

Um mergulho
nu
no nada.

O pássaro
vândalo
diz:

- É tarde.

E foge.

Eu digo: arde.
Te fode.

E mergulho
nu
no tudo.

VI

Ao meu redor
o pássaro canta
cheio de arestas
e some a cada
segundo que eu
procuro prestar
mais atenção.

O pássaro alça
a queda
em qualquer direção
circular
da manhã.

Levanto vôo.
Torto.

VII

E eu falaria de árvores
não houvesse os postes
e os joão de barros
e os fios de luz
e as andorinhas
e as praças
e as velinhas com pipoca
para as pombas.

Eu falaria em pássaros
não houvesse os ângulos.
Falaria em penas
não houvesse os cantos.

Eu atiraria pedras
não houvesse a certeza
de que erraria
o pássaro pela
inclinação do ângulo
de abertura do estilingue.
(Ou por querer errar mesmo.)

Atiraria pedras
não houvesse o medo
de esquecer de soltá-las
mais uma vez.

E o pássaro sorriria.
(Que de alguma maneira
eles devem sorrir.)