março 31, 2006
março 30, 2006
"Poemas não se fazem com idéias - mas com palavras" (Stéphane Mallarmé)
Deixo às ideias a prosa
prosaica
da prosa arcaica de idéias:
não tenho idéias,
mas trabalhos as palavras
na medida que posso:
poço de poesia,
porosa,
arrejada pela voz do poeta.
março 29, 2006
neve
desconfiada de que poderia ser tanto romantismo
quanto cantada barata, perguntou sim?, realmente
sonhara?, e o que acontecera? o menino, só depois de um
sorriso feliz, contou como estava frio, como nevava:
o som do mundo estava todo paralisado; o chapéu voava.
ela não pode se agüentar, interrompeu a história e disse:
"o que você vestia?"; mas ele não se lembrava, não se
recordava de nada além daquilo que voava; por isso teve
que inventar na hora o paletó de linho branco & a calça
de riscado que, juntos, e somados ao chapéu & à bengala,
compuseram um elegante, inesquecível e curioso fato.
contou como o chapéu ainda insistia em voar ao sabor
do vento, “fosse meu, e eu não ligaria, mas se o perco,
se o vovô descobre!”, por isso corria o menino em seu sonho
atrás do acessório fugidio, que sempre & sempre escapava,
mesmo que o melhor ardil do mundo bolasse o menino
para conseguir recuperar do sopro a relíquia do pobre avô.
foi exatamente correndo atrás da peça furtada antes
que, pela primeira vez no sonho, avistou a menina-dama,
de vestido longo verde escuro, os cabelos presos em
duas tranças, a pele alva e pura confundindo-se com a neve
enquanto ela brincava alegremente entre as árvores do pequeno bosque
congelado no quintal da sua casa: “vi então que ela era você!”.
“Henrique!”, ela disse, “que fazes aí sozinho? vem cá
brincar comigo!!”; e levantando o chapéu-coco nas mãos
completou: “e o que queres com o chapéu do teu avô?”
a menina riu um pouco, pois o nome dele não era Henrique,
não, não era, e ela nunca se imaginara falando de tal maneira,
tão polida, tão dama, de longo nas árvores brincando!
o menino contou que a chamou pelo nome, mas ela só
respondeu “que dizes?”, e jogou-lhe uma bola-de-neve
na altura do estômago: assim brincar-se-ia por muito tempo,
não os fosse os gritos de “Lisandrinha!”, cortando o vento,
“Lisandrinha!, hora do chá! onde estás menina?”, e a guerra
teve que parar por aí para que pudéssemos nos esconder.
não tínhamos vontade de tomar chá, nem sabíamos do que
tínhamos vontade, ou o que queríamos fazer nos escondendo,
apenas ficamos lá, deitados na neve, eu de terno, você de longo.
a menina já não achava nem engraçado, nem uma cantada barata:
bebia cada palavra em um sorriso suspirando poesia: imaginava
as belas imagens de uma vida só possível nos sonhos do menino.
“apenas nós, lá, deitados na neve”, disse ele, “ouvindo a música
que seu pai ou alguém em sua casa tocava ao piano”, a sonata número
quatorze de beethoven cortando o ar, lentamente, adagio sostenuto,
repetidas as notas num exercício contínuo, ao passo que você me disse
que tinha frio, e se tinha não o sei, mas pediu que eu te abraçasse,
e nunca poderia negar esse pedido a dama tão formosa e te abracei.
ficamos os dois ali, sem saber o que aquilo significava, o que
significava meus braços em torno do seu corpo e nossas faces
muito próximas umas das outras – mas ainda sem se tocar; nossos
olhos sorrindo-se, sem saber o que significava o frêmito dos lábios
e o corpo tremia afinal porquê? posto que já não sentíamos frio; não
sabíamos também porque nossas peles se tocarem de relance era tão bom.
a sonata da luz da lua vai com o vento e da lugar para outra, a vinte e três,
apassionata, primeiro andante com moto, enquanto ainda descobríamos
que tocar o rosto do outro com as mãos é deleitoso, embora não
entendêssemos o que sentíamos, nem o que viria a ser lúbrico - ou lascivo.
a menina, não conseguindo desgrudar os olhos do menino, ouvia
mentalmente as músicas da fantasia onírica pensando: “tudo se encaixa!!”.
foi quando a música tornou-se mais vigorosa, allegro assai, e eles se
abraçaram mais perto, mais forte, escondendo os seus rostos embaixo
do chapéu-coco do avô, aproximando as respirações; ele pára de
brincar com as tranças dela e fecha os olhos, pois a menina os fechara
e ele não sabia bem o que tinha que fazer, não que ela soubesse,
mas o que ela fizesse a ele pareceria a melhor coisa a ser feita.
quando a melodia da música explodiu em harmonias poderosas foi
o momento que os lábios se tocaram, pela primeira vez, ingênuos,
temerosos, rapidamente: tocaram e afastaram-se, sentiram o prazer,
voltaram a se tocar; o menino e a menina se aproximavam enquanto
ele contava essas coisas todas, ela cada vez mais imersa no mundo
fantástico criado pelo sonho, desejando o belo e puro beijo onírico.
o menino contou que os dois sentiam um calor cada vez
que se beijavam, e “esse calor fazia um bem danado naquele
inverno”, disse, “por isso continuamos nos beijando, aos poucos,
embora não soubéssemos que aquilo se chamava beijo,
nem se servia para algo além de esquentar & nem se podíamos
fazer". “o amor foi puro”, sorriu, leve, “não mais, nunca mais teve neve".
março 27, 2006
recém-amanhecida, a cidade parecia aconchegante e convidativa:
tudo perfeitamente ao modo do meu mood:
a temperatura mantinha-se relativamente baixa; o céu variava entre o cinza e o branco acinzentado:
nada de azul ou pálidazul ou o laranjadinho do alvorecer: todo nuvens sem sol;
nas ruas úmidas as calçadas molhadas lembravam-se das chuvas recentes:
ocasionas, em sua maioria, pois próximas do ocaso, embora nunca inesperadas,
ao contrário da tempestade do ontem:
lembra eu correndo na chuva? e a garoa pingando na minha alma?:
o dia, entretanto, apresentar-se-ia sem grandes pretensões pluviais, pudesse eu ter lá ficado;
soprava insistente um frio gélido, um vento polar maldito que iniciaria uma lufada triste e violenta que balançaria as árvores e que machucaria as faces das pessoas
& que me deixaria feliz em acordar com essa dor:
imaginava-me andando por muito tempo através das ruas, por muito tempo, até meus olhos lacrimejarem,
meus lábios secarem,
partirem,
sangrarem.
nunca posso ficar em curitiba quando o clima está propício às minhas poucas alegrias.
nunca.
dos últimos dias que fui à cidade este me pareceu o mais perfeito, e não pude ficar mais que um par de horas pelas ruas organizando minha partida.
é claro que, no decorrer dos ontens, tive tempo para ver também as chuvas, assim chamadas, de verão; tempo de sentir o calor deturpando minha imaginação ártica,
minha gélida poética,
que voltava mais ou menos a funcionar quando via as silhuetas, meio destruídas, dos pinheiros encharcadas e empoçadas nas calçadas,
mas perdia-se novamente quando o charme ficava abafado e o terno, por mais que eu quisesse, não mais se fazia necessário.
perdia também meu entendimento do que, agora, e não antes, far-se-á da minha vida:
entendo as escolhas, entendo, mas não posso mudar o fato de que elas fazem com que eu sinta o dito clima necessário para minha existência:
É Vinícius, bem colocado os termos ficariam assim: não menos que uma palheta fender, não mais que um all star sem estrelinha.
março 21, 2006
Quadro IV - O Carnaval
março 16, 2006
o canto dos pássaros era tudo que os ligava a realidade momentânea daquele instante eterno:
daquele beijo eterno com gosto de rosas:
eu sei que o universo em fluxo vai continuar seguindo seu caminho, eu sei como é,
& por isso mesmo congelo na memória a imagem
que vi quando estava de olhos fechados (a imagem inefável daquelas notas)
tento não me esquecer que é por isso
- exatamente por isso -
que cantamos todas as manhãs.
ninguém fala sobre as grandes decisões que eu não tomei, ninguém fala, sobre elas é só silêncio & dúvidas & não-sei-quê.
ninguém fala se eu posso sair daqui
& ir procurar meu sonho em outro lugar: ir procurar meu sonho mesmo que nada mais possa encontrar
além de pássaros cor-de-rosa,
que foram tudo o que sobrou:
de volta àquelas questões de cores
(àquela questão dos sonhos)
me encontro entre voltas, às voltas com as palavras soltas:
algumas curtas como num romance & outras claras, poesia – claro, sempre o inexplicável ilogismo: a borboleta azul
sendo devorada pelo passarinho.
março 14, 2006
geada
brincar do lado de lá do equador e
me deixe aqui, passando frio
enquanto destilo minha poesia invernal
num copo com três versos de gelo:
quando eu acordava cinco e quinze da manhã e
lutava para sair da cama e ir para a escola,
era com prazer que meu passo a grama trincava.
março 10, 2006
Je T'aime
O fato é que nos últimos tempos tornou-se muito impessoal assassinar uma pessoa. Armas de fogo são por demasiadas impessoais, muito impessoais, muito. É extremamente fácil, veja bem, puxar um gatilho a certa distância, talvez até pelas costas, talvez até em amantes grávidas, fácil demais. Chega a ser covardia, eu diria. Chega a ser ridículo. Poderia até eu mesmo pegar uma arma qualquer, uma Glock talvez, calibre clássico, .45, para ser bem americanizado, ir até algum lugar semi-deserto, matar uma pessoa aleatória e voltar para casa fumar meu palheiro tomando café gelado enquanto escrevo alguma coisa na tela do meu computador. Todo sem ver um olhar de desespero nem ter que carregar para o resto da vida o peso de um olhar morto: os olhos, o pior dos órgãos de se ver despido de vida.
O lance do assassinato seria usar armas brancas. Sujar-se gordo. Um machado para ser literário, talvez americano (uma moto-serra seria então), mas mais russo nesse caso (o que dizer de Trotski?). Eu queria ver a cisão da alma de um crime cometido com o machado. Só depois o castigo. Antes o contato quente do corpo da vítima, o sangue jorrando, os olhos assustados. Os olhos incrédulos. Ah!, os olhos!, os olhos mortos. É muito fácil puxar um gatilho, muito fácil apertar um botão: quero machados, espadas e escudos. E a Glock também fabrica facas.
E foi isso que eu fiz. Não uma guerra medieval (eu bem que gostaria, mas para isso tive que me contentar com o RPG da adolescência e meu sem-número de personagens guerreiros truculentos – competindo em quantidade apenas com os magos, sou fascinado por magia) e nem um romance, russo ou policial. O que eu fiz foi abandonar meu mundo de textos em pixels e coquetéis de café – mas não o fumo em palha de milho – para fazer uma experiência. Uma experiência um tanto nietzschiana: tentar chegar à liberdade total e testar o limite da culpa agüentada, mesmo que pela destruição da minha alma, ou outra coisa qualquer. Levar aos limites do crime o caráter, agora descaracterizado, cindido.
A princípio tudo era, como em um clichê, uma idéia vaga que nascia quase sozinha e assustava-me, às vezes, e em outras me fascinava. Com o tempo, entretanto, tornou-se uma maldita obsessão. Descobri isso quando me dei em uma loja de armas namorando uma semi-automática .9mm, com silenciador (isso foi antes da conclusão de que, fosse o que fosse que eu fizesse, não deveria ser com modernidades facilitóides). Cheguei a ponto de desejar, com afinco, matar certas pessoas em certos momentos com uma certeza assustadora de que não era força de linguagem. Racionalizei. A questão sempre foi cometer o crime sem se tornar um assassino. Um homicida, mas não um assassino.
Pensei, por fim, que deveria ser uma pessoa aleatória, totalmente. Além disso: mulher, jovem e gostosa. Não sei o porquê de optar primeiramente por essas características, mas hoje sei que foram a perdição da liberdade buscada. Nessa época já decidira que seria com uma arma branca, embora ainda estivesse entre o machado e a faca. Mais tarde escolhi esta e pus-me a delirar sobre os possíveis modelos.
No fim tudo foi aleatório, até o dia, até o local. Tudo.Tudo menos a faca (não da Glock, como pensei um tempo, mas da Tramontina, Profissional Master para carnes, 14”) que, já há alguns meses, estava sempre comigo. Aconteceu quando eu voltava para casa depois de uma sessão de cinema com adendo ao bar mais próximo e pit-stop em casa de certa amiga. Extremamente alterado pelo álcool e cansado pelo sexo, acabei me perdendo em ruas que pareciam todas iguais. Em bairros que pareciam todos iguais com pessoas que pareciam todas idênticas. Não fosse a notícia no jornal nunca saberia o nome da rua ou o nome dela. O nome dela! O nome que me atormentará para sempre: Lavínia, Lavínia.
Infelizmente, devido aos fatores já mencionados, e também pelo ato como um todo, não me recordo de várias coisas. Não sei quando a avistei, sei que logo eu estava reduzindo a velocidade e observando aquele andar luxurioso. Fiquei excitado. Com tesão. Mas não desejava, ainda, possuir aquele corpo – mesmo porque a minha amiga me deixara satisfeito quanto a esse aspecto –, o que eu queria era cortá-lo. Machucá-lo. Fazer sangrar aquele corpo escultural metido em mini-saia preta, meia-arrastão, bota e blusinha de gola pólo. O andar desfilado me provocava. Na rua estava ela sozinha. Tão providencial que me julguei por alguns segundos sonhando um filme hollywoodiano.
Eu dirigia meu Corsa preto ano 98 (modelo 99) de vidros filmados. O motor mil roncava baixo. No toca-cd Jane Birkin e Serge Gainsbourg gemiam que se amavam mas não tanto e, nesses segundos, eu também amava aquelas costas, mas ainda não tanto.
Aproximei-me lentamente, parei o carro e desci. Por um momento ela pareceu assustada (agora a olhava de frente, pela primeira vez, mas não podia divisar, no escuro, suas feições ou a beleza do seu rosto, apenas a hesitação corporal. Era ainda mais gostosa de frente, os peitos apertados dentro da blusinha apontando o norte do meu desejo; as coxas mexendo, conforme o andar sensual, dentro da meia-arrastão), mas logo eu caminhei até um portão, como se fosse abri-lo, e ela continuou seu desfile solitário. O bairro não devia ser violento, as casas eram bonitas, com quintais grandes e muros baixos.
Mexia como um bêbado (eu até o estava, mas o momento deixara-me mais ciente das idéias) no cadeado quando ela chegou cruzando a calçada onde eu estava. Toquei seu braço de leve e perguntei com aquela voz característica de cachaceiro se ela poderia me ajudar. Ela parou e, antes que pudesse dizer qualquer coisa – pelo menos sua voz, que deveria ser linda, não me atormenta –, enfiei a faca, todas as quatorze polegadas para dentro do seu lascivo corpo.
Foram os segundos em que fui Deus travestido de Demônio. O poder da vida de uma pessoa nas minhas mãos. O sangue quente escorrendo nas minhas mãos. Agonizante, ela caiu de joelhos, apertando forte o corte – um pouco abaixo dos belos seios –, que sangrava muito, e emitindo gemidos dolorosos, tão diferentes dos da música (que ainda soava no repeat do meu som). Tentou gritar, a garganta falhando, os lamentos indecifráveis com cheiro de lágrimas. Perfurei-a mais duas vezes, uma na altura do estômago e outra na coxa, a última apenas por lubricidade. Não me sentia um monstro, muito pelo contrário, o assassínio da inocente me dava o poder, a liberdade plena da libertinagem, o sossego do meu anseio: minha tara masoquista suprema. Acendi um cigarro de palha e deleitei-me
Foi então que tudo desabou. Os olhos. Ah, os olhos. De joelhos, quase morrendo, olhando para mim da posição de puta que me faria um boquete, ela destruiu com seus olhos o meu sonho. Não posso descrever o sentimento que eles passavam, havia o incrédulo previsto, mas ia muito além. Havia submissão, medo, desespero, tristeza, e havia o ódio. O ódio. O sentimento mais próximo do amor naqueles olhos mais lindos do mundo me derrubou do píncaro para o precipício. Apaixonei-me pelo último brilho daqueles malditos olhos mortos. Lavínia, seus olhos, Lavínia!, chama verde se apagando, acabaram com tudo.
Lavínia, o amor da minha vida. Essa foi a minha cisão, o dividir da minha alma, ou outra coisa qualquer. Carrego o peso da morte da parte complementar do meu andrógino, o extermínio da minha alma gêmea. Eu tenho certeza de que ela era. Tenho certeza. Lavínia morta passou a ser minha obsessão. Não alcancei a liberdade, prendi-me ainda mais. Prendi-me a olhos mortos que jamais terei. Não passo um dia sem pensar como seria ter Lavínia, os olhos fechados em um beijo, os olhos abertos em um bom dia, os gemidos de prazer no sexo, não de dor na morte. Lavínia, a música da minha destruição.