março 29, 2006

neve

então o menino falou: "sonhei com você", e a menina,
desconfiada de que poderia ser tanto romantismo
quanto cantada barata, perguntou sim?, realmente
sonhara?, e o que acontecera? o menino, só depois de um
sorriso feliz, contou como estava frio, como nevava:
o som do mundo estava todo paralisado; o chapéu voava.

ela não pode se agüentar, interrompeu a história e disse:
"o que você vestia?"; mas ele não se lembrava, não se
recordava de nada além daquilo que voava; por isso teve
que inventar na hora o paletó de linho branco & a calça
de riscado que, juntos, e somados ao chapéu & à bengala,
compuseram um elegante, inesquecível e curioso fato.

contou como o chapéu ainda insistia em voar ao sabor
do vento, “fosse meu, e eu não ligaria, mas se o perco,
se o vovô descobre!”, por isso corria o menino em seu sonho
atrás do acessório fugidio, que sempre & sempre escapava,
mesmo que o melhor ardil do mundo bolasse o menino
para conseguir recuperar do sopro a relíquia do pobre avô.

foi exatamente correndo atrás da peça furtada antes
que, pela primeira vez no sonho, avistou a menina-dama,
de vestido longo verde escuro, os cabelos presos em
duas tranças, a pele alva e pura confundindo-se com a neve
enquanto ela brincava alegremente entre as árvores do pequeno bosque
congelado no quintal da sua casa: “vi então que ela era você!”.

“Henrique!”, ela disse, “que fazes aí sozinho? vem cá
brincar comigo!!”; e levantando o chapéu-coco nas mãos
completou: “e o que queres com o chapéu do teu avô?”
a menina riu um pouco, pois o nome dele não era Henrique,
não, não era, e ela nunca se imaginara falando de tal maneira,
tão polida, tão dama, de longo nas árvores brincando!

o menino contou que a chamou pelo nome, mas ela só
respondeu “que dizes?”, e jogou-lhe uma bola-de-neve
na altura do estômago: assim brincar-se-ia por muito tempo,
não os fosse os gritos de “Lisandrinha!”, cortando o vento,
“Lisandrinha!, hora do chá! onde estás menina?”, e a guerra
teve que parar por aí para que pudéssemos nos esconder.

não tínhamos vontade de tomar chá, nem sabíamos do que
tínhamos vontade, ou o que queríamos fazer nos escondendo,
apenas ficamos lá, deitados na neve, eu de terno, você de longo.
a menina já não achava nem engraçado, nem uma cantada barata:
bebia cada palavra em um sorriso suspirando poesia: imaginava
as belas imagens de uma vida só possível nos sonhos do menino.

“apenas nós, lá, deitados na neve”, disse ele, “ouvindo a música
que seu pai ou alguém em sua casa tocava ao piano”, a sonata número
quatorze de beethoven cortando o ar, lentamente, adagio sostenuto,
repetidas as notas num exercício contínuo, ao passo que você me disse
que tinha frio, e se tinha não o sei, mas pediu que eu te abraçasse,
e nunca poderia negar esse pedido a dama tão formosa e te abracei.

ficamos os dois ali, sem saber o que aquilo significava, o que
significava meus braços em torno do seu corpo e nossas faces
muito próximas umas das outras – mas ainda sem se tocar; nossos
olhos sorrindo-se, sem saber o que significava o frêmito dos lábios
e o corpo tremia afinal porquê? posto que já não sentíamos frio; não
sabíamos também porque nossas peles se tocarem de relance era tão bom.

a sonata da luz da lua vai com o vento e da lugar para outra, a vinte e três,
apassionata, primeiro andante com moto, enquanto ainda descobríamos
que tocar o rosto do outro com as mãos é deleitoso, embora não
entendêssemos o que sentíamos, nem o que viria a ser lúbrico - ou lascivo.
a menina, não conseguindo desgrudar os olhos do menino, ouvia
mentalmente as músicas da fantasia onírica pensando: “tudo se encaixa!!”.

foi quando a música tornou-se mais vigorosa, allegro assai, e eles se
abraçaram mais perto, mais forte, escondendo os seus rostos embaixo
do chapéu-coco do avô, aproximando as respirações; ele pára de
brincar com as tranças dela e fecha os olhos, pois a menina os fechara
e ele não sabia bem o que tinha que fazer, não que ela soubesse,
mas o que ela fizesse a ele pareceria a melhor coisa a ser feita.

quando a melodia da música explodiu em harmonias poderosas foi
o momento que os lábios se tocaram, pela primeira vez, ingênuos,
temerosos, rapidamente: tocaram e afastaram-se, sentiram o prazer,
voltaram a se tocar; o menino e a menina se aproximavam enquanto
ele contava essas coisas todas, ela cada vez mais imersa no mundo
fantástico criado pelo sonho, desejando o belo e puro beijo onírico.

o menino contou que os dois sentiam um calor cada vez
que se beijavam, e “esse calor fazia um bem danado naquele
inverno”, disse, “por isso continuamos nos beijando, aos poucos,
embora não soubéssemos que aquilo se chamava beijo,
nem se servia para algo além de esquentar & nem se podíamos
fazer". “o amor foi puro”, sorriu, leve, “não mais, nunca mais teve neve".

4 comentários:

viniciusdc disse...

Jogou-lhe uma bola de neve na altura do estômago levando Lisandrinha ao chão, antes tarde, Lis sacou seu tchaco num movimento leve e ordenado, assim o passando com voracidade pela lateral de seu corpo em movimentos frenéticos que fizeram Henrique pensar, talvez por um momento, que aquilo fosse um tanto quanto masoquista, caindo assim na arapuca da menina, que mesmo atrapalhada por seu longo vestido verde saltou e com um relance acertou-lhe as fuças arrancando-lhe carne do rosto. Henrique zonzo, com o rosto imerso em um formigueiro tinha dificuldades a pensar, dificuldades a mover, talvez tenha até rachado a têmpora. Caído no chão coberto da neve, que pouco a pouco se manchava do sangue mais vermelho da talvez criança mais pura. Aprendendo a vida, estava ele, que num belo dia, resolveu se meter com uma linda menina.
Henrique, por favor, não tente entender, que a dor lhe sirva de lição.

Cauê disse...

o começo está muito bom, não consigo ler no computador!

tem coisa nova no meu passa lá!

Anônimo disse...

do caralho...

Anônimo disse...

Nice colors. Keep up the good work. thnx!
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