O fato é que nos últimos tempos tornou-se muito impessoal assassinar uma pessoa. Armas de fogo são por demasiadas impessoais, muito impessoais, muito. É extremamente fácil, veja bem, puxar um gatilho a certa distância, talvez até pelas costas, talvez até em amantes grávidas, fácil demais. Chega a ser covardia, eu diria. Chega a ser ridículo. Poderia até eu mesmo pegar uma arma qualquer, uma Glock talvez, calibre clássico, .45, para ser bem americanizado, ir até algum lugar semi-deserto, matar uma pessoa aleatória e voltar para casa fumar meu palheiro tomando café gelado enquanto escrevo alguma coisa na tela do meu computador. Todo sem ver um olhar de desespero nem ter que carregar para o resto da vida o peso de um olhar morto: os olhos, o pior dos órgãos de se ver despido de vida.
O lance do assassinato seria usar armas brancas. Sujar-se gordo. Um machado para ser literário, talvez americano (uma moto-serra seria então), mas mais russo nesse caso (o que dizer de Trotski?). Eu queria ver a cisão da alma de um crime cometido com o machado. Só depois o castigo. Antes o contato quente do corpo da vítima, o sangue jorrando, os olhos assustados. Os olhos incrédulos. Ah!, os olhos!, os olhos mortos. É muito fácil puxar um gatilho, muito fácil apertar um botão: quero machados, espadas e escudos. E a Glock também fabrica facas.
E foi isso que eu fiz. Não uma guerra medieval (eu bem que gostaria, mas para isso tive que me contentar com o RPG da adolescência e meu sem-número de personagens guerreiros truculentos – competindo em quantidade apenas com os magos, sou fascinado por magia) e nem um romance, russo ou policial. O que eu fiz foi abandonar meu mundo de textos em pixels e coquetéis de café – mas não o fumo em palha de milho – para fazer uma experiência. Uma experiência um tanto nietzschiana: tentar chegar à liberdade total e testar o limite da culpa agüentada, mesmo que pela destruição da minha alma, ou outra coisa qualquer. Levar aos limites do crime o caráter, agora descaracterizado, cindido.
A princípio tudo era, como em um clichê, uma idéia vaga que nascia quase sozinha e assustava-me, às vezes, e em outras me fascinava. Com o tempo, entretanto, tornou-se uma maldita obsessão. Descobri isso quando me dei em uma loja de armas namorando uma semi-automática .9mm, com silenciador (isso foi antes da conclusão de que, fosse o que fosse que eu fizesse, não deveria ser com modernidades facilitóides). Cheguei a ponto de desejar, com afinco, matar certas pessoas em certos momentos com uma certeza assustadora de que não era força de linguagem. Racionalizei. A questão sempre foi cometer o crime sem se tornar um assassino. Um homicida, mas não um assassino.
Pensei, por fim, que deveria ser uma pessoa aleatória, totalmente. Além disso: mulher, jovem e gostosa. Não sei o porquê de optar primeiramente por essas características, mas hoje sei que foram a perdição da liberdade buscada. Nessa época já decidira que seria com uma arma branca, embora ainda estivesse entre o machado e a faca. Mais tarde escolhi esta e pus-me a delirar sobre os possíveis modelos.
No fim tudo foi aleatório, até o dia, até o local. Tudo.Tudo menos a faca (não da Glock, como pensei um tempo, mas da Tramontina, Profissional Master para carnes, 14”) que, já há alguns meses, estava sempre comigo. Aconteceu quando eu voltava para casa depois de uma sessão de cinema com adendo ao bar mais próximo e pit-stop em casa de certa amiga. Extremamente alterado pelo álcool e cansado pelo sexo, acabei me perdendo em ruas que pareciam todas iguais. Em bairros que pareciam todos iguais com pessoas que pareciam todas idênticas. Não fosse a notícia no jornal nunca saberia o nome da rua ou o nome dela. O nome dela! O nome que me atormentará para sempre: Lavínia, Lavínia.
Infelizmente, devido aos fatores já mencionados, e também pelo ato como um todo, não me recordo de várias coisas. Não sei quando a avistei, sei que logo eu estava reduzindo a velocidade e observando aquele andar luxurioso. Fiquei excitado. Com tesão. Mas não desejava, ainda, possuir aquele corpo – mesmo porque a minha amiga me deixara satisfeito quanto a esse aspecto –, o que eu queria era cortá-lo. Machucá-lo. Fazer sangrar aquele corpo escultural metido em mini-saia preta, meia-arrastão, bota e blusinha de gola pólo. O andar desfilado me provocava. Na rua estava ela sozinha. Tão providencial que me julguei por alguns segundos sonhando um filme hollywoodiano.
Eu dirigia meu Corsa preto ano 98 (modelo 99) de vidros filmados. O motor mil roncava baixo. No toca-cd Jane Birkin e Serge Gainsbourg gemiam que se amavam mas não tanto e, nesses segundos, eu também amava aquelas costas, mas ainda não tanto.
Aproximei-me lentamente, parei o carro e desci. Por um momento ela pareceu assustada (agora a olhava de frente, pela primeira vez, mas não podia divisar, no escuro, suas feições ou a beleza do seu rosto, apenas a hesitação corporal. Era ainda mais gostosa de frente, os peitos apertados dentro da blusinha apontando o norte do meu desejo; as coxas mexendo, conforme o andar sensual, dentro da meia-arrastão), mas logo eu caminhei até um portão, como se fosse abri-lo, e ela continuou seu desfile solitário. O bairro não devia ser violento, as casas eram bonitas, com quintais grandes e muros baixos.
Mexia como um bêbado (eu até o estava, mas o momento deixara-me mais ciente das idéias) no cadeado quando ela chegou cruzando a calçada onde eu estava. Toquei seu braço de leve e perguntei com aquela voz característica de cachaceiro se ela poderia me ajudar. Ela parou e, antes que pudesse dizer qualquer coisa – pelo menos sua voz, que deveria ser linda, não me atormenta –, enfiei a faca, todas as quatorze polegadas para dentro do seu lascivo corpo.
Foram os segundos em que fui Deus travestido de Demônio. O poder da vida de uma pessoa nas minhas mãos. O sangue quente escorrendo nas minhas mãos. Agonizante, ela caiu de joelhos, apertando forte o corte – um pouco abaixo dos belos seios –, que sangrava muito, e emitindo gemidos dolorosos, tão diferentes dos da música (que ainda soava no repeat do meu som). Tentou gritar, a garganta falhando, os lamentos indecifráveis com cheiro de lágrimas. Perfurei-a mais duas vezes, uma na altura do estômago e outra na coxa, a última apenas por lubricidade. Não me sentia um monstro, muito pelo contrário, o assassínio da inocente me dava o poder, a liberdade plena da libertinagem, o sossego do meu anseio: minha tara masoquista suprema. Acendi um cigarro de palha e deleitei-me
Foi então que tudo desabou. Os olhos. Ah, os olhos. De joelhos, quase morrendo, olhando para mim da posição de puta que me faria um boquete, ela destruiu com seus olhos o meu sonho. Não posso descrever o sentimento que eles passavam, havia o incrédulo previsto, mas ia muito além. Havia submissão, medo, desespero, tristeza, e havia o ódio. O ódio. O sentimento mais próximo do amor naqueles olhos mais lindos do mundo me derrubou do píncaro para o precipício. Apaixonei-me pelo último brilho daqueles malditos olhos mortos. Lavínia, seus olhos, Lavínia!, chama verde se apagando, acabaram com tudo.
Lavínia, o amor da minha vida. Essa foi a minha cisão, o dividir da minha alma, ou outra coisa qualquer. Carrego o peso da morte da parte complementar do meu andrógino, o extermínio da minha alma gêmea. Eu tenho certeza de que ela era. Tenho certeza. Lavínia morta passou a ser minha obsessão. Não alcancei a liberdade, prendi-me ainda mais. Prendi-me a olhos mortos que jamais terei. Não passo um dia sem pensar como seria ter Lavínia, os olhos fechados em um beijo, os olhos abertos em um bom dia, os gemidos de prazer no sexo, não de dor na morte. Lavínia, a música da minha destruição.
4 comentários:
É, tudo culpa da Lavínia se meus deliriozinhos não querem vir ao mundo.
bem bom isso.
J
Esses pixels, cada vez mais estranhos, te chupam as palavras dos olhos. Cuidado Renan!
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