julho 30, 2007

I

Do vão da porta da casa ela podia ver um jardim não muito grande cheio de rosas brancas [como sua pele] rosas vermelhas [como suas bochechas] rosas rosas [como sua calcinha] à sombra de uma árvore de jabuticabas pretas [como sua saia] e completamente maduras perto de um portão cor-de-tijolo [como seus cabelos] no fim de um tapete de grama verde [como seus olhos] ainda esbranquiçado pela geada. Além via a rua. A rua era o que existia de mais específico. Tinha quinze anos então e nada via de si mesma no pequeno jardim que a separava da rua, que era a única coisa que tentava entender. Nunca tentara entender o jardim. Passava as tardes na porta olhando para o rio de asfalto cinza-escuro que surgia em uma curva descendo por entre outras casas e pequenos prédios, e se afastava subindo em linha reta por entre outras casas e outros pequenos prédios para servir de afluente a um outro rio de asfalto cinza-escuro que seguiria até outras ruas e a outras e a avenidas que acabariam levando em direção aos grandes prédios que se erguiam além da rua na direção do céu. A rua era específica, sabia de tanto analisá-la tarde após tarde: levaria, de uma forma ou de outra, ao centro da cidade e àqueles arranha-céus escuros de cortinas em tons pastéis. Já os conhecia. Não era isso o que mais lhe fascinava na rua. Não era o caminho; não sabia bem o que era. Pela manhã, ia para a escola no centro, perto dos prédios altos, e ia por essa rua, exatamente essa, e voltava pela mesma rua. Não podia ser o caminho que lhe fascinava, embora fosse essa a primeira especificidade que notara: a rua a levaria ao centro sempre que quisesse. A rua, na verdade, a guiaria por calçadas e pontos de ônibus para qualquer lugar, mas isso a tornava difusa, não específica, e aos quinze anos, parada na porta de casa depois do almoço, o que importava mais eram as qualidades tangíveis, não um conceito de rua, mas a idéia, concreta, de que a rua tinha por fim específico atingir o centro. O centro podia ser Roma, embora essa analogia escapasse ao universo referencial da garota de quinze anos que passava as tardes assistindo a rua. O centro era o centro. E nem era isso que mais lhe fascinava na especificidade das ruas – pois parecia certo que todas eram específicas. O que lhe fascinava ao certo, não sabia. Talvez fosse o fato de as ruas sempre terem início e fim e sempre estarem interligadas a outras ruas. Sempre. Isso ela pensava, não assim, com essas palavras, mas pensava que as ruas sempre levam a algum lugar, e sempre chegam lá, e esse lugar, que no seu mundo se resume ao centro de prédios altos, só é acessível por que as ruas – as ruelas, as travessas, as avenidas – se interligam por toda a cidade, se interligam até que nada resta a não ser chegar ao centro. Ou deixar a cidade. Nunca deixara a cidade a não ser para ir à praia, por uma rodovia grande e cinza de várias pistas da qual saiam como pequeninos galhos estradinhas de terra batida e pedras de saibro que ela nunca soube para onde iam a não ser pela certeza de que deveriam ir para algum lugar, como todas as ruas, embora não houvesse prédios aonde chegar, mas sabia que a grande rodovia cinza, embora não os visse, levava a outros prédios diferentes daqueles que via todos os dias, primeiro em uma outra cidade, depois em uma outra – bem pequena essa – e só depois até os prédios e as casas da praia. Aos doze anos inferira por indução, embora não soubesse o que era indução, que todas as estradas que tomasse levariam a outros centros e prédios altos em outras cidades e que nessas cidades sempre existiriam números incontáveis de ruas se interconectando em uma rede cujo centro sempre seria o centro, de camelôs e prédios altos. Concluira também, de forma que julgou genial, que não existia utilidade para uma rua que não se ligasse a outras, ou no mínimo a uma outra, ruas. Isso, e as palavras agora são dela, seria como criar um lugar inacessível. Desnecessário. Escreveu a sentença em um caderninho de capa cinza-escuro que deixava na terceira gaveta da escrivaninha marrom que ficava em um dos cantos do seu quarto. Escreveu Uma rua, uma via que não se ligue a nenhuma outra rua, que apenas ligue dois pontos, é uma estrada inútil. Criar um lugar assim seria como criar um lugar inacessível. Desnecessário. Tal aberração, se existir, não deveria ser permitida.

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