Jean-François, jaqueta de couro e óculos escuros, iniciou a narrativa (a meta-narrativa?) preocupado com cheiros: colocou, antes de tudo, um punhado de cânfora no tanque vazio da sua Harley. Um punhado qualquer, abstrato. Não sabia muito bem que forma teria tal punhado. Nem precisava: a palavra "cânfora" lhe fascinou mais pela sonoridade do que pelo sentido e embora não lembrasse exatamente de onde a vira (numa revista, talvez?), deliciava-lhe a musicalidade do vocábulo. Cânfora. Cânfora enchia a boca. Quanto às motocicletas, nunca lhe interessaram. Mesmo a jaqueta e os óculos não passavam de figuras de linguagem para introduzir o problema da gasolina, esse sim, específico.
Gasolina comum, dessas que se compra por litro. Jean-François, ele-mesmo, nunca dissertava abertamente sobre; não conseguia nem sequer escrever a palavra "gasolina" sem se sentir inquieto. Quando isso acontecia – e era comum que não conseguisse grafar o nome de coisas que o incomodavam –, recorria a um artifício literário: escrevia sobre escrever sobre. De seu próprio punho, jamais. Não eram poucos os vocábulos em que – fosse pelo sentido, pelo som de certos fonemas, ou por outra coisa qualquer – Jean-François encontrava impossibilidade de grafar. Preferia sempre – pós-moderno que era – fragmentar sua própria personalidade em micronarrativas descentralizadas do que cometer a injúria de colocar-se perante os problemas lingüísticos de seus pesadelos.
No caso da gasolina, não era o sentido que lhe importava, mas sim a sonoridade dos oito grafemas emparelhados: ao contrário de cânfora, gasolina lhe causava apreensão. Assustava-lhe a musicalidade do vocábulo, que remetia sinesteticamente ao cheiro do combustível. Gasolina, palavra, era toda odor; enchia o nariz. E é por isso que, embora não soubesse da forma que teria tal punhado, abriu uma nova página no editor de textos e escondeu o punhado de cânfora no tanque da sua Harley: para introduzir o assunto específico da gasolina por um contexto que escapasse do seu universo pessoal.
Não é que não gostasse do cheiro de gasolina. Muito pelo contrário, o odor lhe causava certo entorpecimento agradável, e era isso que o mais inquietava na palavra "gasolina": a conexão, por associações específicas, com o cheiro. Tinha medo de descobrir o quanto gostava. Por isso, no meta-relato, a cânfora como punhado de anti-gasolina. Por isso escondendo (inconscientemente liberando-se desse desgosto), por isso a Harley (que foge completo do seu mundo). Na sua condição afeiçoava-se muito mais aos jogos de linguagem do que à realidade.
maio 25, 2007
maio 13, 2007
2005, dezembro
num primeiro momento
em meio ao teu riso
exteriorizo segredos
e sem ler o teu aviso
a tua imagem contemplo
mas depois de entendido
e extendido meu tédio
me abato ao contrário
teu todo contraio
e sem nada mais rio
* * *
terrorista
você pára por algum tempo
para ser admirada
eu corro por muito tempo
para ser esquecido
os mundos se acabam em caminhos
carinhos & vamos indo
então somos todos lembrados
pelo que não queríamos ter sido
no final do final de uma explosão
onde eu admiro teu esquecimento
não-indentificável, espalhado pelo chão.
em meio ao teu riso
exteriorizo segredos
e sem ler o teu aviso
a tua imagem contemplo
mas depois de entendido
e extendido meu tédio
me abato ao contrário
teu todo contraio
e sem nada mais rio
* * *
terrorista
você pára por algum tempo
para ser admirada
eu corro por muito tempo
para ser esquecido
os mundos se acabam em caminhos
carinhos & vamos indo
então somos todos lembrados
pelo que não queríamos ter sido
no final do final de uma explosão
onde eu admiro teu esquecimento
não-indentificável, espalhado pelo chão.
maio 11, 2007
Reencontro romântico pós-Hollywoodiano
Sempre a achou fascinante, sempre a achou, com aquele seu jeito elíptico, indo e vindo nas memórias do tempo em que de longe, só de longe, observava o seu andar cadenciado; quando a observava flutuar por sobre as pessoas, aura cor-de-rosa de alguma divindade perdida que o fascinou durante toda a adolescência. Sempre a achou fascinante. Sempre. Aquele gosto que só ela deixava no ar quando passava; aquela cor sedutora que transpirava um hype prematuro. Sempre a achou fascinante, mas mesmo levando tudo isso em conta, naqueles tempos do colégio, nunca trocou mais do que meia dúzia de palavras forçadas com ela. Não se sentia à vontade. Era absurdo, ABSURDO! Passar mal exatamente ao lado da pessoa que mais desejava? Do brilho que mais queria? O brilho daquele estilo. Era isso que no fundo mais desejava: o brilho daquele estilo. Ela foi a pessoa mais cool que ele jamais conheceu, mesmo não a tendo conhecido; ele, por outro lado, naqueles tempos do segundo grau, era um nada – um nerd. Quase-opostos, mas não opostos; quase-iguais: havia uma solidão, uma triste existência naquela sala de aula, que os aproximava e isso o fascinava até hoje.
Por muito tempo idealizou um reencontro perfeito; idealizou a corte, o êxtase, o sonho. Imaginava ela absolutamente charmosa, usando um daqueles vestidinhos que ele tanto recordava e andando da mesma maneira que sempre andara: movimentos lentos e calculados, elegantes, perfeitos. E os cabelos! A vertiginosa cor rosa dos cabelos bem delineados em uma franja era uma das memórias mais vivas de toda a sua vida: um rosa extremo; AQUELE rosa. Imaginava ela ainda assim, como se congelada no tempo; seus sorrisos exatamente como se recordava naquele abril em que pela única vez abraçou-a, sem querer, por um acaso. Todo o frescor de quando ela ainda tinha os cabelos lilases, antes da paixão fulminante do rosa. Abril é o mais cruel dos meses.
Quanto a si mesmo, imaginava-se para o reencontro sendo a si mesmo, algo que não sabia o que era. Desatento ao tempo e às mudanças, ainda queria se entender como naquela época da adolescência quando sua vida era olhar a luz cor-de-rosa de seus sonhos. Sólido, acreditava que ela também não mudara. Mas era fumaça líquida que o ofuscava: imaginou personalidades mil, que, súbito, se metamorfoseavam em outros trejeitos, adequando-se ao seu presente estar. Só ele não percebia o quanto isso acompanhava suas próprias alterações e flutuações de ser. Sua própria identidade fragmentada fragmentava a musa sem se dar conta; a descentralização dos desejos concentrada em manter o desejo. Só o cabelo dela é que não mudava. Nunca.
Um dia, enfim, a encontrou. Foi em um porão; ele estava lá dançando embalado por alguma banda de novo rock; ela fumava a um canto. Cinematográfico. Quando os olhares se cruzaram, os olhos – incomodados – recusaram se reconhecer. Foi estranho. Ele, claro, como sempre a achara fascinante, distinguiu a elipse da sua vida antes. Ela demorou mais para entender. Por um leve segundo, a desconfiança; depois o descrédito. Sorriram. Poderiam ser pessoas quaisquer, desconhecidos que trocavam seu primeiro olhar. Muito especialmente para ele, entretanto, havia profundidade na ocasião. Fitou-a por um bom tempo, decepcionado, antes de ter coragem para se aproximar. Não havia o ansiado cabelo rosa, não havia a franja: madeixas escuras, quase bem-comportadas, é que emolduravam o rosto ainda belo da dama antes sonhada. De resto, era perfeita: as roupas; o gosto musical; os olhos verdes; o charme ao fumar lentamente. Ainda flutuava, é claro, mas não tinha mais a franja.
A garota, da sua parte, nunca imaginara um reencontro com ele; nunca nem pensara no assunto – ou sequer havia se lembrado daquela existência. Mas agora, interposta ao tiroteio, reconheceu o olhar faminto e ficou surpresa. É claro que se o tivesse imaginado não teria sido assim, tão perfeitamente convincente a um sonho. O ambiente era inegavelmente seu habitat: despertou questões extremas sobre quem teria exatamente sido no passado, sobre quem teria sido aquele garoto quieto que gostava de olhá-la. No físico e no estético havia drásticas mudanças: extremamente bem vestido, muito além das velhas e esdrúxulas roupas da adolescência, a própria postura corporal era mais confiante; toda a composição do agora, bem apreciada, exalava certo ar de autoridade, de macho existencialista. Sorriu, docemente curiosa.
Sempre a achara fascinante, e não foi a conversa naquele porão que mudou isso; e ela, que nunca ligara para ele, fascinou-se. Gostavam do mesmo universo de coisas – música, literatura, cinema, urbanidades, teorias – discordando agradavelmente em alguns pontos. O passado, se não houvesse existido, não mudaria o rumo da noite – se fossem completos desconhecidos poderiam ter tido exatamente as mesmas conversas. Mas o passado, existindo, passou a incomodar: ele não conseguia parar de pensar na franja, nem mesmo o rosa importava mais – só a franja. Uma obsessão crescente: aos poucos foi perdendo o interesse por todo o resto e só conseguiu se concentrar na não existência da franja, naquela não-franja. Isso não chegou, é claro, ao ponto de impedi-lo de beijá-la e nem ao ponto de impedi-lo de levá-la para casa, despi-la e consumar um desejo de anos; mas foi algo que o incomodou por toda a noite. A franja devastada. “Em que está pensando?” Pensa ela, ao olhar dele, e no dia seguinte vai embora às pressas; anda pelas ruas com o cabelo em desalinho. Agora são conhecidos mútuos, cada qual com um novo telefone na agenda do celular.
Por muito tempo idealizou um reencontro perfeito; idealizou a corte, o êxtase, o sonho. Imaginava ela absolutamente charmosa, usando um daqueles vestidinhos que ele tanto recordava e andando da mesma maneira que sempre andara: movimentos lentos e calculados, elegantes, perfeitos. E os cabelos! A vertiginosa cor rosa dos cabelos bem delineados em uma franja era uma das memórias mais vivas de toda a sua vida: um rosa extremo; AQUELE rosa. Imaginava ela ainda assim, como se congelada no tempo; seus sorrisos exatamente como se recordava naquele abril em que pela única vez abraçou-a, sem querer, por um acaso. Todo o frescor de quando ela ainda tinha os cabelos lilases, antes da paixão fulminante do rosa. Abril é o mais cruel dos meses.
Quanto a si mesmo, imaginava-se para o reencontro sendo a si mesmo, algo que não sabia o que era. Desatento ao tempo e às mudanças, ainda queria se entender como naquela época da adolescência quando sua vida era olhar a luz cor-de-rosa de seus sonhos. Sólido, acreditava que ela também não mudara. Mas era fumaça líquida que o ofuscava: imaginou personalidades mil, que, súbito, se metamorfoseavam em outros trejeitos, adequando-se ao seu presente estar. Só ele não percebia o quanto isso acompanhava suas próprias alterações e flutuações de ser. Sua própria identidade fragmentada fragmentava a musa sem se dar conta; a descentralização dos desejos concentrada em manter o desejo. Só o cabelo dela é que não mudava. Nunca.
Um dia, enfim, a encontrou. Foi em um porão; ele estava lá dançando embalado por alguma banda de novo rock; ela fumava a um canto. Cinematográfico. Quando os olhares se cruzaram, os olhos – incomodados – recusaram se reconhecer. Foi estranho. Ele, claro, como sempre a achara fascinante, distinguiu a elipse da sua vida antes. Ela demorou mais para entender. Por um leve segundo, a desconfiança; depois o descrédito. Sorriram. Poderiam ser pessoas quaisquer, desconhecidos que trocavam seu primeiro olhar. Muito especialmente para ele, entretanto, havia profundidade na ocasião. Fitou-a por um bom tempo, decepcionado, antes de ter coragem para se aproximar. Não havia o ansiado cabelo rosa, não havia a franja: madeixas escuras, quase bem-comportadas, é que emolduravam o rosto ainda belo da dama antes sonhada. De resto, era perfeita: as roupas; o gosto musical; os olhos verdes; o charme ao fumar lentamente. Ainda flutuava, é claro, mas não tinha mais a franja.
A garota, da sua parte, nunca imaginara um reencontro com ele; nunca nem pensara no assunto – ou sequer havia se lembrado daquela existência. Mas agora, interposta ao tiroteio, reconheceu o olhar faminto e ficou surpresa. É claro que se o tivesse imaginado não teria sido assim, tão perfeitamente convincente a um sonho. O ambiente era inegavelmente seu habitat: despertou questões extremas sobre quem teria exatamente sido no passado, sobre quem teria sido aquele garoto quieto que gostava de olhá-la. No físico e no estético havia drásticas mudanças: extremamente bem vestido, muito além das velhas e esdrúxulas roupas da adolescência, a própria postura corporal era mais confiante; toda a composição do agora, bem apreciada, exalava certo ar de autoridade, de macho existencialista. Sorriu, docemente curiosa.
Sempre a achara fascinante, e não foi a conversa naquele porão que mudou isso; e ela, que nunca ligara para ele, fascinou-se. Gostavam do mesmo universo de coisas – música, literatura, cinema, urbanidades, teorias – discordando agradavelmente em alguns pontos. O passado, se não houvesse existido, não mudaria o rumo da noite – se fossem completos desconhecidos poderiam ter tido exatamente as mesmas conversas. Mas o passado, existindo, passou a incomodar: ele não conseguia parar de pensar na franja, nem mesmo o rosa importava mais – só a franja. Uma obsessão crescente: aos poucos foi perdendo o interesse por todo o resto e só conseguiu se concentrar na não existência da franja, naquela não-franja. Isso não chegou, é claro, ao ponto de impedi-lo de beijá-la e nem ao ponto de impedi-lo de levá-la para casa, despi-la e consumar um desejo de anos; mas foi algo que o incomodou por toda a noite. A franja devastada. “Em que está pensando?” Pensa ela, ao olhar dele, e no dia seguinte vai embora às pressas; anda pelas ruas com o cabelo em desalinho. Agora são conhecidos mútuos, cada qual com um novo telefone na agenda do celular.
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