maio 25, 2007

para encaixar: "...e escondeu o punhado de cânfora no tanque da sua Harley"

Jean-François, jaqueta de couro e óculos escuros, iniciou a narrativa (a meta-narrativa?) preocupado com cheiros: colocou, antes de tudo, um punhado de cânfora no tanque vazio da sua Harley. Um punhado qualquer, abstrato. Não sabia muito bem que forma teria tal punhado. Nem precisava: a palavra "cânfora" lhe fascinou mais pela sonoridade do que pelo sentido e embora não lembrasse exatamente de onde a vira (numa revista, talvez?), deliciava-lhe a musicalidade do vocábulo. Cânfora. Cânfora enchia a boca. Quanto às motocicletas, nunca lhe interessaram. Mesmo a jaqueta e os óculos não passavam de figuras de linguagem para introduzir o problema da gasolina, esse sim, específico.

Gasolina comum, dessas que se compra por litro. Jean-François, ele-mesmo, nunca dissertava abertamente sobre; não conseguia nem sequer escrever a palavra "gasolina" sem se sentir inquieto. Quando isso acontecia – e era comum que não conseguisse grafar o nome de coisas que o incomodavam –, recorria a um artifício literário: escrevia sobre escrever sobre. De seu próprio punho, jamais. Não eram poucos os vocábulos em que – fosse pelo sentido, pelo som de certos fonemas, ou por outra coisa qualquer – Jean-François encontrava impossibilidade de grafar. Preferia sempre – pós-moderno que era – fragmentar sua própria personalidade em micronarrativas descentralizadas do que cometer a injúria de colocar-se perante os problemas lingüísticos de seus pesadelos.

No caso da gasolina, não era o sentido que lhe importava, mas sim a sonoridade dos oito grafemas emparelhados: ao contrário de cânfora, gasolina lhe causava apreensão. Assustava-lhe a musicalidade do vocábulo, que remetia sinesteticamente ao cheiro do combustível. Gasolina, palavra, era toda odor; enchia o nariz. E é por isso que, embora não soubesse da forma que teria tal punhado, abriu uma nova página no editor de textos e escondeu o punhado de cânfora no tanque da sua Harley: para introduzir o assunto específico da gasolina por um contexto que escapasse do seu universo pessoal.

Não é que não gostasse do cheiro de gasolina. Muito pelo contrário, o odor lhe causava certo entorpecimento agradável, e era isso que o mais inquietava na palavra "gasolina": a conexão, por associações específicas, com o cheiro. Tinha medo de descobrir o quanto gostava. Por isso, no meta-relato, a cânfora como punhado de anti-gasolina. Por isso escondendo (inconscientemente liberando-se desse desgosto), por isso a Harley (que foge completo do seu mundo). Na sua condição afeiçoava-se muito mais aos jogos de linguagem do que à realidade.

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