Não era meia-noite – como nunca foi meia-noite –, mas chovia; absurdamente chovia, a chuva fustigando a janela. Lavínia deu dois passos para fora de casa, e só; foi o que bastou para a chuva açoitar também seus olhos verdes e ela voltar para o quarto, sentar e copiar a epígrafe de Beckett em uma folha de papel sulfite A4 branco. Voltei então a casa e escrevi. Talvez ela tivesse, de outros tempos de colheita intelectual não concebidas, preso na garganta um poema sobre a chuva; ou talvez fosse só preguiça de tomar dois ônibus até o centro para ouvir a ladainha da irmã mais velha.
Abaixo da fala de Molloy, grafou com letras de forma a palavra chove, seguida de vários – cinco – pontos de exclamação; o braço, meio em piloto automático, transformou o último deles em um grande traço que rasgou toda a extensão vertical da folha; tinta azul se espalhando por vontade própria na imensidão retangular quase-branca. E de repente, no momento em que a caneta pára, Lavínia escreve, em minúsculas, o nome impronunciável de um escritor Húngaro; para depois, do círculo desenhado em volta daquele amontoado de consoantes, riscar uma flecha que corre até à epígrafe da página.
É então que a chuva entra também na casa. Sou triste. Chove pelos meus olhos. As lágrimas fustigam a página. E ela fica ali, chorando, pensando em alguma frase que pudesse salvar da não-existência aquela composição tola. Decide sair de casa. Nua. Sem roupas e sem personalidade, sem um eu; uma folha em branco sendo desintegrada pela tempestade; uma folha em branco sendo escrita de mentiras. Senta-se na beira do mar e fica olhando as pequenas luzes dos barcos balouçarem. Uma folha em branco, um poema sendo escrito pelo vento.
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fluxo-floema
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