Não pareciam os únicos: pareciam parte de algo maior talvez maior ainda. Algo em movimento perpétuo. O calor que entrava pela janela era horrível horrível e o céu explodia [os pedaços do céu entre as coisas] em cores. Os pedacinhos, partes de uma coisa. Não vim aqui te buscar. E quando ela disse, não sobrou nada. Ou o que sobrou foi um gosto indefinido de bebida e gordura, já não sei dizer.
Ele perguntou Quanto de nós pode ser alienado por palavras? não para ela, mas para um ser todo poderoso que devia viver dentro do seu copo. Ela não ligava mais para essas frases, tentativas de reinventar o uso do verbo "alienar", ou da palavra "ponto". Não tinha mais importância [e ele já não dizia isso, nem nunca mais falara em frivolidades teóricas].
Otávio, peloamor. Otávio, larga a mão. Otávio, vê se cresce. Otávio, vaiembora, volta pro Brasil, pelo amor de deus. Qual parte de fui embora por tua causa (em parte) ou de tu é casado com minha irmã (tu ainda é casado com minha irmã né?) você não entendeu? E Otávio só olhando para o copo olhando para o copo olhando para o copo como quem olha para o nada. Eu bem que queria reinventar o início, disse.
Estela sorri [não se aguenta]. Você precisa é reinventar essa ideia toda de reinventar as coisas. Flores, peloamor. Mas se arrepende: Estela teme que ele use a palavra "flores" e o café em Paris como desculpas para citar Baudeleire ou Rimbaud de cabeça.
Estela, agora, já domina Paris, ou pelo menos uma parte da cidade. Naquela tarde estava usando um sapato e um vestido preto pequeno com o cabelo preso atrás da cabeça. Mas Brigite deve vir. Não quero que ela saiba. Saiba o quê?, Otávio perguntou. Que antes eu estive aqui, Estela respondeu. Ele abriu a boca para falar mas acabou bebendo. Se ofereceu para largar tudo [Brigite, a agência, o Brasil, a casa nova com quartos a mais para os futuros filhos] inúmeras vezes e toda vez ela se decepcionava com a falta de capacidade dele para entender que não bastava: isso tudo era uma parte de algo muito maior, já não importava mais.
Vou ser escritor, ele disse, depois de acender mais um cigarro [o terceiro, desde que Estela chegara]. Não é o que todos vocês querem? Nós quem? Ah, você sabe: pessoas que escrevem sem serem escritores. Otávio demorou para responder dessa vez. Para Estela, sempre havia sido difícil dizer não ao desejo por Otávio, mas desde que ele veio atrás dela em plena lua-de-mel com Brigite estava se tornando mais fácil a cada encontro, a cada pedaço de vida juntos. Você acha que existem escritores? Ela respondeu que não.
Peloamor, talvez aqui na França.
Otávio fez uma careta depois de beber mais um gole de whisky. Uma menina sorriu para Estela ao passar pela mesa perto da janela [o calor ainda explodia a tarde]. Estela estava se tornando uma estilista rápido, o francês ainda com sotaque. Bom, é óbvio que não vou ser sua amantebarramusa. Nem ficaria com você se tu largasse a Brigite. Acho que te odiaria então, talvez tanto quanto odeio Frederico.
Ótavio não respondeu a última provocação, mas sabia o que significava. Como ela poderia odiar alguém mais do que Fred Soares, com quem ela havia sido casada, durante anos de desgosto e desprezo mútuo anos de desgosto, e a largara pela porta lateral da casa?
Brigite também falava pouco com Estela, desde que ela fugira para Paris horas antes de seu casamento com Otávio deixando listas de palavras coloridas dizendo coisas que precisavam ser feitas e não foram feitas. Nunca a havia perdoado e Brigite não sabia que poderia ter sido pior: caso Estela tivesse chamado Otávio para fugir junto, ele teria ido.
Depois de pedir um café, Estela entregou uma folha de caderno para Otávio. Te desenhei isso, disse. Era um rabisco, não significava nada. Ela disse: Não entreguei da outra vez que você esteve aqui porque era tudo ainda muito recente: os passos, o som dos passos, a ausência de tempo. Ninguém quer uma tragédia inesgotável. É esse tipo de coisa que tu escreve, tragédias inesgotáveis?, ele perguntou Estela respondeu ninguém lê o que escrevo, mas escrevera sobre Otávio sim. Tivera que escrever. E Otávio olhando o copo olhando e pensando no que Estela escreveria se escrevesse sobre ele. Um cheiro indefinido de gordura e álcool e o tempo explodindo explodindo.
Quanto tempo ainda até Brigite aparecer? Quanto tempo eles ainda podem manter essa coreografia sem sexo? Você é muito decente, Estela Bittencourt. Essa coisa de família, círculos sociais, reputação. Essa coisa de escolher o sague ao invés da carne. Escolher o sangue ao invés da carne! O Sangue ao invés da Carne! Era demais para Estela, o calor e o cheiro de gordura invadindo o seu corpo invadindo o seu corpo magro por baixo do vestidinho de verão enquanto ela acendia o primeiro cigarro, para não rir de Otávio.
Estou vendo alguém, ela disse. Vendo alguém, ele repetiu. A gente fala que nem no cinema porque é a métrica de frases que aprendemos desde crianças. Ah Otávio, mais frases de efeito? Estou transando com um cara, melhor? Ele é francês? Não, alemão. Ah, alemão - eles sim têm palavras para tudo. Palavras para tudo: mas nem tudo pode ser dito.
Não o que Estela queria dizer, pelo menos. Ou não de alguma forma que ela conseguisse. Quando fugiu, Estela não disse não. Disse que precisava fazer a análise apropriada e que não queria perpetuar uma enganação [essas foram as palavras exatas]. Mas a enganação continua e Estela sabe que precisa fazer alguma coisa. Talvez seja preciso continuar em movimento continuar em movimento senão a vontade te engole e você transa com Otávio só pela lembrança de uma noite fria em São Paulo ou tu diz algo que faz tudo voltar ao ponto em que está agora.
Quanto de nós pode ser alienado pelas palavras? E no fim não resta nada, o mundo.
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