dezembro 17, 2009

Sobre segredinhos

Luís Carlos Borges fez na década de 70 uma conferência secreta na livraria clandestina Zékian, em Paris. Nesse encontro, Borges contou como seu pai não conseguia recordar da juventude. Não existem recordações de imagens, explicou, apenas memórias construidas a partir de outras memórias, nunca da realidade.

Isso me intriga.

Tentei falar com Enrique Vila-Matas outro dia, para perguntar se a livraria Zékian, de porta branca, de fato existiu, ou se ele a inventou.

No Google, não achei nada que não se referisse ao livro Paris não tem fim, de Vila-Matas, ou a um autor chamado Stéphane Zékian, que aparentemente escreve em francês e em alemão e que possuiu o email stephane.zekian@wanadoo.fr.

Wanadoo é um ISP francês e por isso não entrei em contato: não confio em quem não usa Gmail.

O narrador de Vila-Matas vai uma segunda vez até a Zékian, onde riem dele quando fala a senha que deveria falar para entrar e tem um encontro estranho, com pessoas que não conhecia.

Imagino que as pessoas que frequentavam essa livraria clandestina em uma Paris livre fossem estúpidas como as pessoas que aqui frequentam o Bar Secreto; que gostam dessa aura de clandestinidade. A clandestinidade, que traz um sentimento próximo daquele despertado pelo exclusivo.

Embora, até onde sei, esta seja uma São Paulo livre, há esse movimento de secretismo, para falsificar uma aura.

P.S.: assim como Borges esteve na Zékian, pessoas legais podem estar no Secreto nesse exato momento. E isso não muda nada a idiotice de um ou de outro lugar.

dezembro 13, 2009

Em Montevidéu, no mês de Abril de 2007, o irmão mais velho de Helena, Otávio, comprou em um sebo no centro da cidade por apenas dois pesos uma edição em espanhol de Os Cantos de Maldoror. Esse livro foi escrito originalmente em francês por Isidore Lucien Ducasse, um poeta que nasceu no Uruguai em 1846 e morreu em um hotel na França, 24 anos depois.

Ducasse ficou
mais conhecido na história da literatura pelo pseudônimo de Conde de Lautréamont. Pouco mais se sabe sobre ele. Em 1977, encontraram na Espanha uma edição da Ilíada de Homero em que havia uma inscrição afirmando que o livro, no passado, pertencera ao señor Isidoro Ducasse nacido en Montevideo (Uruguay).

Há algumas semanas, Helena encontrou dentro do Cantos de Maldoror um manuscrito, em português, escrito para Eládia, por Enrique, em Buenos Aires. Otávio, que não leu os Cantos todos, nunca havia encontrado o texto. Nada mais se sabe sobre Enrique e Eládia. A versão transcrita abaixo é literal.

Eládia. Eládia. Quanto de ti preciso agora? E porque não posso ter? Porque pequei, bem claro, pequei. Mas e as palavras? As palavras não poderiam explicar. E eu me entregaria ao vórtice, como quis me entregar uma vez; eu me entregaria a queda. E estivéssemos errados. Me entregaria. Agora me chamas diluição, desilusão. Passei o dia pensando em te escrever, o dia todo; mas um certo lirismo me impelia sempre ao esconderijo que há atrás das paredes de minha poesia. Agora, derrubo-as. Sem mais fugas, que as cometi demais na vida.

E me perguntavas: nos apaixonamos por pessoas ou por contextos? E eu respondi “contextos”, que é como pensava. E ainda penso! Mas você, você Eládia, você foi além; e agora vejo que ainda estás aqui. Não adianta me mandar ter com minhas “outras”, ou como se refira a elas, e nem me chamar mais uma vez daquilo tudo que quer chamar (com direto; dou-te à face para o tapa do fracasso). Pequei pelo meu fraco por manipular os outros; sou um poeta mentiroso que passa os dias escrevendo para manipular as pessoas. Só que não você Eládia, não você, que tudo foi natural e perfeito.

Mas agora me gritas “pára!”, se tento explicar que aquilo. E não é o que eu quero, a decisão que não tomei; agora vejo melhor. Vaidade minha. Num momento de dúvida, faço com que ela se apaixone por mim só para alimentar meu ego, meu orgulho ferido. Sonhei penhascos, admito; mas logo retornei à queda, a nossa queda; e foi novamente por vaidade que não aboli o outro, dizes, romance. Ah, que fui diluído, e fiz as cosias novamente da maneira errada. Agora passeio pelas ruas de uma Buenos Aires que apesar de real, é imaginária; sozinho e quieto.

Como será amar em Buenos Aires? Será que ainda poderei saber Eládia? Que não está há paixão para onde me mandou. Um preciosismo barato de querer manipular. Bem claro agora. E não falo mais. Neste momento, não há porque esconder nenhum sentimento que eu posso ter – ou criar. Não espero uma resposta, não precisas me responder. O importante é que eu escreva, e que leias, e que saibas. Saibas que algo em mim me diz que não há como continuar, não agora, não assim. Não há. Quanto te olho Eládia, um simples olhar, sei que não há. De que me adiantaria buscar outros sentimentos se já criamos tudo o que eu precisava?

É preciso que saibas que, de alguma maneira, a vida deve continuar; e que sinto, momento após momento, que ainda te desejo; que ainda te quero mais que a tudo. Sempre impedido pelo lirismo da minha poesia simbólica demais, não disse como deverias ter dito que te desejo. Quando escrevi “como nas quedas orquestradas”, deveria ter logo escrito que estava irremediavelmente apaixonado. Sempre quis que minha poesia fosse um vasto pedaço de tango sobre nada. Por isso agora assumo esse dramaticidade, esse trágico. Por isso me refugio em terras portenhas e imagino como seria amar ao som de Gardel, ou de Piazolla. E falar do amor, falar do amor.

Buenos Aires amanheceu gélida; as janelas todas esbranquiçadas. Saí logo cedo e andei algum tempo pelo Caminito, o vento castigando minha face branca até meus lábios quase sangrarem. O céu, de um azul pálido e solitário, sorria, complacente da minha dor. Juro que tentei fazer o que me mandaste. Claro que não funcionou. Nem funcionará; e eu sei disso apenas por olhar para você caminhando em direção ao seu trabalho (sim, depois de te mostrar aquele livro lindo, fiquei encostado na árvore olhando-te ir).

Agora, enquanto tomo um café sob o olhar cuidadoso de Carlos e melodias improváveis me vêm à cabeça, escrevo essas linhas um guardanapo, tal qual fosse uma letra de música improvisada na hora da composição. Apenas diga, e poderias me fazer largar todo o resto; poderias me fazer pétala por pétala reinventar a flor de uma maneira que só nós entendêssemos. Nós e nossa poesia Eládia; nós, nossa poesia. Ah, essa ternura de louco que há em mim.

Enrique,
Buenos Aires, 8 de julho de 2006